O livro Crime e Castigo, de Fiódor Dostoiévski, publicado em 1866, aborda os conflitos psicológicos de um ex estudante de direito que passa por dificuldades financeiras. Tais conflitos desencadeiam ideias e pensamentos criminosos.
O conflito interno vivido pelo personagem de Raskólnikov, apresenta-se por meio de pensamentos, confusos e por vezes não conclusos. Essa característica da escrita do autor faz com que o leitor realmente entre na cabeça do personagem, sinta e experimente a confusão e a angustia vivida pelo personagem, conforme Dostoiévsky (2009, p. 75) retrata no trecho abaixo:
“Meu Deus! – exclamou ele será, será que eu vou pegar mesmo o machado, que vou bater na cabeça, vou esmigalhar o crânio dela... vou deslizar no sangue viscoso, quente, arrebentar o cadeado, roubar e tremer; esconder-me, todo banhado de sangue... com o machado... meu Deus, será possível?”
O livro é dividido em seis partes. A primeira parte trata-se do “Iter Criminis” – da sucessão de todos os atos preparatórios até a prática da conduta delituosa, que na história se dá pelo homicídio cometido por Raskólnikov contra a pessoa de Aliena Ivánovna, uma viúva usurária, muito má, e sua irmã Lisavieta.
Curiosamente Crime e Castigo divergi dos demais romances policiais, onde o crime é exclusivamente o que move a trama. De fato, desde o primeiro capítulo, o autor deixa claro que o protagonista será o autor do crime, bem como a motivação, sem falar que o crime ocorre ainda na primeira parte do livro. Em suma, o crime em si não é o foco principal do autor, mais e principalmente as consequências advindas do cometimento deste, psicologicamente e na vida do personagem principal Raskólnikov.
A Segunda parte do livro fala sobre as consequências psicológicas, o trauma, a culpa inconsciente, sem falar no medo e na aflição de ser pego depois do homicídio e a forma pela qual o personagem reagi a tudo isso.
Nessa parte do livro passado o estado catatônico inicial, mecanismo de defesa fruto do trauma, o personagem encontra-se duplamente perturbado, e paranoico com a possibilidade de ser descoberto. O artifício usado pelo autor para refletir esse estado de espírito do protagonista foi repetir, sequencialmente algumas falas e ou pensamentos do personagem, fazendo com que o leitor passasse a sentir a perturbação e a inquietação, bem como sentir de forma mais realista as emoções vividas pelo personagem, de acordo com Dostoiévsky (2009, p. 106 ) retrata no trecho abaixo:
“De fato, sinais! Todo o bico da meia embebido de sangue”; pelo visto na ocasião ele havia metido o pé naquela possa por descuido... “E agora, o que vou fazer com isso? Onde vou meter essa meia, a franja, o bolso?” ... “meto tudo na estufa? Mas é na estufa onde primeiro vão começar a remexer. Queimar? Mas queimar com o quê? Nem fósforo eu tenho. Não, é melhor ir a algum lugar e jogar tudo fora.”
Também é possível entender essa perspectiva quando Dostoiévsky (2009, p. 106), através da voz do personagem afirma que “... e durante muito tempo, horas a fio imaginou-se com ímpetos de “ ir agora mesmo, sem demora, a algum lugar e jogar tudo fora, para que tudo fique longe do alcance de vista e sem demora, sem demora!”
Assim em alguns momentos é possível que o próprio leitor sinta-se confuso ou angustiado, de acordo com as emoções vividas pelo personagem. Fato que torna a leitura pesada e densa em alguns momentos da trama. O que não é um ponto negativo, tendo-se em vista que poucos são os autores que conseguem tal feito.
Na terceira parte do livro somos apresentados a um artigo escrito por Raskólnikov, esse artigo retrata uma teoria criada pelo próprio personagem que dividi os seres humanos em “ordinários” e “extraordinários”, sendo classificados como ordinários todos aqueles que devem viver em obediência, porque essa é simplesmente a sua índole.
Em suma são indivíduos comuns, enquanto os extraordinários por sua vez são indivíduos extremamente inteligentes que têm a capacidade de mudar o mundo a sua volta, conforme (2009, p. 269) retratado no trecho abaixo:
“Os Licurgos, Sólons, Maomés, Napoleões etc., todos eles, sem exceção, foram criminosos já pelo fato de que, tendo produzido a nova lei, com isso violaram a lei antiga que a sociedade venerava como sagrada e vinha dos ancestrais, e aí, evidentemente, já não se detiveram nem diante do derramamento de sangue, caso esse sangue, (às vezes completamente inocente e derramado de forma heroica em defesa da lei antiga) pudesse ajudá-los.”
No trecho em destaque Raskólnikov explica porque os extraordinários podem e devem infringir as leis, independentemente da consequência ser a morte de várias pessoas, tendo inclusive mencionado o nome de algumas figuras ilustres que se enquadram na categoria de seres humanos extraordinários e que tiveram um papel significativo na história da humanidade como Maomé e Napoleão.
Em suma, em seu artigo o personagem é a favor do cometimento das infrações e até do derramamento de sangue inocente, desde que tudo seja feito em prol da humanidade e sendo este o meio necessário para instaurar-se a mudança.
Na quarta e quinta parte do livro o personagem principal se aproxima de Sônia, uma das muitas vítimas da situação econômica pela qual passava à Rússia na época. Talvez por vê-la como semelhante, ou seja, como uma pecadora.
Ironicamente essa foi à personagem escolhida pelo autor para instaurar a mudança no personagem, essa mudança dá-se em grande parte pela fé de Sônia, que mesmo sendo uma pecadora é crédula e boa, conforme (2009, p. 428):
“Levanta-te! (Ela o agarrou pelos ombros; ele soergueu-se, olhando-a meio surpreso.) vai agora, neste instante, para em um cruzamento, inclina-te, beija primeiro a terra, que tu profanaste, e depois faz uma reverência a todo este mundo, em todas as direções que quiseres, e diz a todos em voz alta: “Eu matei!”. Então Deus te mandará vida mais uma vez. Vais? Vais”.
Uma característica notável da obra é a forma como o autor humaniza seus personagens. O próprio Raskólnikov, mesmo sendo um criminoso é extremamente humano e benevolente em certas passagens do livro, como quando doou todo o dinheiro que tinha ganhado de sua mãe e irmã para que a viúva Catierina Ivánovna e os órfãos pudessem elaborar o funeral de Marmieládov.
Ademais, os capítulos finais do livro mostram que no caso do personagem condenado a trabalhos forçados na Sibéria, a pena não foi apenas mais uma forma de ressarcir os danos causados à sociedade. Para o personagem, a pena concomitante ao amor e à força inexplicável da fé acabou por purifica-lo e resgata-lo.